sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A historia apócrifa de Judite e Holofernes nas obras de Michelangelo da Caravaggio e Artemisia Gentileschi








Judite degolando Holofernes” Artemisia Gentileschi, 1620












Judite e Holofernes” Michelangelo da Caravaggio 1598

1 Resumo
A história apócrifa de Judite e Holofernes sempre atraiu e fascinou artistas ao longo dos séculos. A reprodução, quer da degolação de Holofernes quer dos momentos anteriores e posteriores a este acto, estão entre as cenas religiosas mais representadas ao longo da História da Arte (pintura, escultura, literatura e música) sobrevivendo mesmo e resistindo até ao século XX. Artistas como Palma Vecchio, Michelangelo, Rembrandt, Donatelo, Botticelli, Gustav Klimt entre muitos outros, contribuíram para que este episódio, que faz parte do imaginário cultural ocidental, se estabelecesse como tema recorrente do ideário próprio da historiografia da arte, atravessando os séculos e sendo peça essencial da construção da própria identidade e cultura ocidental.
O que procurarei fazer neste breve trabalho é descrever as origens da história e a construção do mito religioso e ao mesmo tempo sintetizar a sua integração no nosso imaginário colectivo. Procurarei fazê-lo não de uma forma arqueológica mas mais epistemológica. Posteriormente, irei analisar duas transposições plásticas deste episódio, durante o período barroco, mais concretamente da pintora italiana Artemisia Gentileschi e do pintor italiano Michelangelo da Caravaggio.

1. 1.Anoiteceu. Os oficiais apressaram-se em voltar aos seus aposentos.
Vagao fechou as portas do quarto e foi-se.
2. 2.Estavam todos embriagados pelo vinho.
3. 3.Judite ficou só no seu quarto,
4. 4.enquanto Holofernes repousava em seu leito, bêbedo a cair.
5. 5.Judite havia dito à sua serva que ficasse fora, diante do quarto, vigiando
.
Judite, 13, Antigo Testamento




Judith, 1585, Hendrik Goltzius




2 O Livro de Judite

« Seigneur, dit le jeune homme, il vous serait préférable de demeurer immobile, car rien ni personne au monde ne m´arrêtera »
Chrétien de Troyes, Perceval

O livro de Judite é um livro deuterocanónico. Esta terminologia (teológica católica romana) serve para nomear os livros escritos por comunidades cristãs ou pré-cristãs em que a figura de Jesus Cristo ainda não tinha sido conhecida ou reconhecida e por isso não foram considerados numa primeira fase como textos canónicos. Como o de Judite, fazem parte deste grupo os livros de Tobias, Baruque, Eclesiástico, Sabedoria de Salomão e I e II Macabeus, além das adições aos livros de Ester e Daniel.
O livro de Judite relata como a bela e a jovem viúva Judite afasta dramaticamente a ameaça de uma invasão Assíria decapitando o general inimigo Holofernes. Este facto restaurou simultaneamente a fé do povo judeu e testemunhou a capacidade salvadora do seu Deus.
Este livro tem três versões em grego e várias versões em latim onde se reconhecem os traços do original hebreu. A sua redacção deverá ter sido algures situada no século II antes de JC.
A intriga conta que Nabucodonosor rei dos Assírios, ao invadir Israel, toma de assalto a cidade de Betulia iniciando um cerco. É no limite dos seus recursos que a cidade desespera e anseia pela intervenção divina, já entretanto predita. A decapitação de Holofernes estimula e motiva o povo cercado que ataca vitoriosamente as tropas inimigas enfraquecidas pela morte do seu general.
Para muitos a primeira ficção histórica, ela é antes de mais, uma referência iconográfica que serviu à construção de um mito bem mais importante do que a pseudo (não) autenticidade do relato e dos factos neles descritos. Ela é uma parábola fortíssima que recria em si mesmo a essência motivadora das identidades nacionais (nacionalismos).

O livro de Judite é uma história em constante mutação estética e transmitida pelos Homens como um mito e em que a reflexão sobre a essência da história é realizada de uma maneira continua ao longo dos séculos. Interrogarmo-nos sobre essa mesma essência é antes de mais questionar a essência da nossa identidade e sobre a História, como alicerce dessa mesma construção identitária.
Esta história faz parte das escritas (escrituras) fundadoras da nossa identidade civilizacional.

Ao longo de dois mil anos Judite retoma modelos de virtuosidade, violência e sensualidade através de múltiplas representações em incontáveis criações artísticas. Freud dá-a como exemplo do complexo de castração que a mulher vive em relação ao homem que a “desflorou”.
Aliás, a intertextualidade futura da história e da personagem é bem solidificada na própria história, em que Judite se assume já como mito motivador e identitário para o povo que salvou.
“O triunfo de Judite sobre Holofernes é de uma certa maneira uma prefiguração do triunfo da Virgem Maria sobre a sensualidade. Toda a análise iconográfica acaba assim por suportar a interpretação simbólica.” 4

Existiram sempre muitas razões para os artistas recriarem o mito de Judite; desde a reprodução sob encomenda muito especifica até à continuação de um ideário artístico que se multiplica por si e se auto alimenta. Existem também as teorias que justificam esta multiplicidade suportadas pelo inconsciente individual de S. Freud e as teorias suportadas num inconsciente colectivo de Carl Jung (que repousam numa camada mais profunda do inconsciente)

Sabemos que a nossa cultura e expressão identitária acaba por ser um produto por vezes misturado de expressões, mitos, filosofias e dogmas do passado. Sendo assim, Judite é antes de mais um objecto histórico e mesmo arqueológico em termos culturais.
“Perder a Cabeça” é sobretudo uma questão de conhecimento e de racionalidade e a expressão sobrevive e reconstrói-se ao longo de séculos e de diferentes sociedades ao longo de toda a cultura ocidental. 1
Verificamos que a multiplicidade de representações, ao nível da criação artística, de Judite representa em si um campo infindável de estudo e análise que nos conduziriam por caminhos muito abrangentes. Resolvi concentrar a minha análise nas representações de Caravaggio e de Gentileschi pelo que estas representam na relação complexa com as incidências das suas vidas pessoais.









“ Judite e Holofernes” Michelangelo da Caravaggio 1598, pormenores



3 Michelangelo da Caravaggio, a arte e a vida em claro-escuro

« Recebi encomenda de um quadro sobre o tema de Judite e Holofernes. Os meus predecessores representaram o após, quando Judite aporta a cabeça cortada num plateau. Eu queria bem mostrar o acto em si. Uma prostituta minha conhecida posou para a Judite e a criada velha do cardeal pela seguinte. Um ferreiro fez de Holophernes. Para a expressão da cara fui ver muitas execuções públicas e observei muito bem as cabeças cortadas tombadas e guardei as expressões de terror. »
Caravaggio

Caravaggio (1571-1610) foi um pintor genial e que introduziu no espaço pictórico uma relação dramática de claros e escuros que iriam determinar e caracterizar a pintura a partir desse momento.
Em termos pessoais Caravaggio era irascível, marginal, intratável e também homossexual. Foi condenado à morte por assassinato tendo fugido de Roma. Vivendo um destino trágico, acabou por morrer cedo não sem antes marcar a eternidade através das suas múltiplas obras-primas que iriam revolucionar toda a história da arte.
Inventou uma luz muito própria e um estilo muitíssimo característico em que direcciona a luz para onde quer a atenção do receptor, assumindo em pleno a essência e a mensagem de uma Contra-Reforma vigorosa. Podemos afirmar que a obra de Michelangelo da Caravaggio reflecte o conteúdo, o apelo e o sentimento em um fausto arrebatador bem característica do Barroco.

Durante a sua vida polémica recheada de violência e drama, Caravaggio estudou toda a tradição pictórica do passado mas ao mesmo tempo recusou as normas académicas do seu tempo assumindo a superação do Maneirismo corrente. Criou uma maneira nova de representar, mais realista e popular e uma arte que representava a labuta e o sofrimento da plebe, até aí afastada dos espaços pictóricos de representação. Com Caravaggio a fealdade e a deformidade entraram no universo artístico.

E, um grande exemplo deste processo é o quadro “ Judite e Holofernes” onde o realismo e naturalismo dos personagens chegam a ser perturbantes, desde a expressão corporal à luz. Pela primeira vez na História da arte a luz assume um papel central e de protagonismo.
Neste quadro, a expressão avarenta da criada segurando o saco (para colocar a cabeça de Holofernes), a expressão de terror de Holofernes e a expressão final de desdém de Judite marcam uma emergência de todo o cenário com uma penumbra latente num acto de profundo desconcerto.
Verificamos assim que Caravaggio, apesar de seguir a tradição iconográfica vigente (por conta também das encomendas pelas quais sobrevivia) acabou por criar dentro do mesmo universo pictórico uma nova abordagem em que dava ênfase às questões que mais o interessavam e martirizavam.
A iconografia de Caravaggio é assim pululada por laivos pessoais muito característicos que foi denominada “sensualidade obscura” onde a androginia e o erotismo latente marcavam uma presença indelével.
Wolfflin afirmou que “todas as formas artísticas são imaginação, sendo a mesma coisa” 2, Pablo Picasso reescreveu a frase dizendo que Arte era essencialmente imaginação e a imaginação…memória”.
A Judite de Cararavaggio é assim uma Judite carregada de sensualidade e ao mesmo tempo de violência numa dicotomia que serviu para dar uma marca muito pessoal e serviu para perpetuar o mito (o grande objectivo das encomendas) espalhando a mensagem militante da Contra Reforma.

“ Caravaggio´s rendering of such aesthetically imbalanced types- the female conventional, the male real- is less likely to be explained by Renaissance art theory or Jesuit theology than by the influence of gender on the practice of an artist who happened to be male” 3







“ Judite degolando Holofernes” Artemisia Gentileschi, 1620, pormenor



4 Artemisia Gentileschi, a sibila de uma nova Era


« Depois, chegou perto do leito, agarrou a cabeleira da cabeça dele e disse :
Ó Deus de Israel, fortifica-me Senhor, Deus de Israel, neste dia »
Judite, 13, Antigo Testamento

Artemisia Gentileschi (1593-1652) foi filha do pintor Orazio Gentileschi e é por muitos considerada a pintora mais importante até ao século XX. Nascida em Roma conseguiu desenvolver o seu talento até limites impensáveis para uma mulher naquela época. Violada por um amigo de seu pai tudo na sua vida mudou ao ter de suportar a desonra e a injustiça perante a saída incólume do violador. A sua raiva foi muitas vezes transportada para a pintura.
Especializou-se em cenas bíblicas em que dava forte ênfase a mulheres fortes num realismo de cores intensas. É assim, que o episódio de Judite é recorrente na obra de Artemisia com cerca de cinco representações sobre a temática. As suas obras eram muito pretendidas e apreciadas principalmente pelos papas Gregório XV e Urbano VIII.
Foi uma mulher independente pois ficou viúva muito cedo e assumiu o controlo da sua vida a todos os níveis.
Como era hábito nessa altura, não teve acesso a nenhum tipo de educação e só em adulta aprendeu a ler e a escrever. No entanto aprendeu com os mestres e captou a essência da arte de pintar especialmente com Caravaggio, a sua principal influência.
Foi logo a seguir à farsa de julgamento que pretensamente deveria julgar e condenar o seu violador, que Gentileschi pintou “ Judite degolando Holofernes” uma verdadeira obra-prima em que Judite é retratada de maneira decidida e com uma força fora do vulgar.
Já em Florença, e casada com um artista local, retorna a Judite com a tela “ Judite e a sua serva”. Retornará mais cinco vezes a esta cena bíblica que se transformou na sua assinatura artística.
Regressa a Roma e morre em Nápoles, não sem antes trabalhar dois anos na corte de Carlos I em Inglaterra.










“ Judite e sua serva” Artemisia Gentileschi, 1623,



É claro na análise da obra e vida de Artemisia, que a Arte se transformou na sua razão de viver após uma entrada conturbada e dramática na idade adulta.
O esquecimento a que a pintora e a obra da pintora foram sujeitas terminaram com o advento dos estudos feministas. Mas o grande e mais profundo estudo realizado até hoje foi realizado por Mary Garrard3 em 1989. Neste estudo Garrard interpreta a multiplicidade de representações de Judite como “uma oferta de fantasia de vingança de uma mulher que fora ofendida no que lhe era mais íntimo”.
Esta assumpção é tanto mais correcta já que a equação freudiana do binómio decapitação/ castração é também uma referência bíblica, numa perspectiva da vingança “olho por olho”.
As referências a Judite na obra de Artemisia assumem características de catarse e exorcismo que serviram para expulsar a raiva da sua pessoa
O choque ainda se torna maior na perspectiva de a violência ser perpetrada de uma mulher para um homem, numa atitude assumidamente anti-patriacal: estamos assim na génese das ideias feministas, o que justifica só por si a recuperação e utilização desmesurada do nome e da obra da pintora ao longo dos últimos vinte anos.


5 Conhecimento e objectividade na figura de Judite

« Depois, retirando da sacola a cabeça, mostrou-a a eles dizendo: Eis a cabeça de Holofernes, o comandante em Chefe do exército dos Assírios! Eis aqui também o cortinado, debaixo do qual ele jazia, na sua embriaguez. O Senhor matou pela mão de uma mulher!”
Judite, 13, Antigo Testamento



Os filósofos feministas da ciência afirmam repetidamente que o conhecimento, a sua busca objectiva e a sua identificação pressupõe sempre a noção de confusão. Sendo assim, é clara a inscrição da objectividade enquanto noção antagónica de simplificação e síntese.
A personagem Judite assume o conhecimento enquanto alegoria do ser com um topos múltiplo sobre o qual podemos realmente muito aprender 1.
Judite é assim uma ideia-história com estrutura narrativa que assume a própria construção emblemática do imaginário ocidental. É a função principal de Judite, um certo confusionismo cognitivo que permite sistematicamente construir desafios que permitam a evolução.

Esta ansiedade cognitiva ou incerteza cognitiva como lhe chama Bal 1, é em si uma narrativa da própria representação.Judite balança entre o “life giving” e o “life taken” num processo estrutural e definidor bem característico da essência barroca.
E são estes aspectos que fazem o tema de Judite muito apropriado para a representação pois o seu topos é deste logo a imagem forte da decapitação e a centralidade e suspense da acção.

Existe assim ligação directa entre a forma narrativa e a competência epistemológica, entre a capacidade de perceber e receber o conhecimento e a competência para contar e perceber histórias complexas.
No final é sempre a análise narrativa das ideia-histórias como as de Judite e com o seu potencial epistémicológico que serão de crucial importância para a compreensão da cultura e da sociedade contemporânea.

6 Conclusão

A história de Judite foi ao longo dos séculos utilizada como sujeito de representação criando as bases pictóricas e narrativas essenciais à construção identitária da cultura e da sociedade Ocidental. O que pretendi fazer através deste trabalho foi uma análise do mito de Judite e das suas raízes epistemológicas e ao mesmo tempo analisar a perspectiva de representação desse mesmo mito por Caravaggio e Gentileschi sempre nas perspectiva de uma relação directa com o paradigma de vida de cada um desses extraordinários pintores.

8 Notas e referencias bibliográficas
1 BAL, MIEKE (1994): «Head hunting: Judith on the cutting edge of knowledge », in Journal of the Old Testament 1994, 19
2 WOLLFLIN, HEIRINCH (1958): “The sense of form in Art”. New York .CPP
3 GARRARD, M (1988): “Artemisia Gentileschi: The image of female hero in Italian baroque art”. Princeton. PUP
4 BURZLAFF, MARY (2006): « Chaste Sexual Warrior, Civil Heroine, and Femme Fatale: Three views of Judith in Italian Renaissance and Baroque Art. », BA, Georgetown College


5 comentários:

Hernan disse...

Excelente artigo. Encontrei pesquisando sobre mito de Judith e Holofernes.

Anónimo disse...

Só queria remarcar que a primeira imagem é o quadro do Caravaggio e a segunda o de Artemisia

Anónimo disse...

cialis generika preise cialis
prezzo cialis costo cialis
cialis venta cialis
cialis acheter tadalafil

Anónimo disse...

[url=http://achetercialisgenerique20mg.net/]cialis achat[/url] commander cialis en france
[url=http://comprarcialisgenerico10mg.net/]cialis[/url] comprar cialis generico
[url=http://acquistarecialisgenerico10mg.net/]comprare cialis[/url] comprare cialis
[url=http://kaufencialisgenerika10mg.net/]cialis[/url] cialis online

Anónimo disse...

http://prixviagrageneriquefrance.net/ viagra generique
http://commanderviagragenerique.net/ viagra generique
http://viagracomprargenericoespana.net/ viagra
http://acquistareviagragenericoitalia.net/ viagra